A história revela um grande palco, onde interagem mãos de pessoas de bom coração. Aquelas que desejaram a paz e alegria da comunidade, sem excluir ninguém. O coração é onde habita o espírito da floresta, um Deus verdadeiro. E as mãos dos que ambicionaram tudo para si, sem coração, sem perceber a fome das crianças, cujas terras de seus pais foram tomadas, muitas vezes em nome de uma religião, de um deus que não existe.
Escolher a religião, o ritual, trocar de fé, misturar doutrinas e imagens, criar espaços sagrados é um fenômeno intrínseco na história da humanidade. Admirável é a festa do Kuarup no Alto Xingu. Dois pajés ficam a noite toda, até o amanhecer, cantando, dançando e tocando seus chocalhos, em frente aos troncos da madeira kuarup. Esses rituais xamânicos no passado, infelizmente, não foram compreendidos. Antes da festa, jovens índias e índios em pares entram nas ocas tocando flauta aruá (bambu) “para a tristeza ir embora”.
Na cidade de Porto Alegre, no quintal de uma casa, o índio Álvaro inicia seu canto em língua tucano ao som do chocalho, coroando cada um com seu lindo cocar de penas de águia trazido do Alto Rio Negro. O índio, a aldeia, podem praticar seus rituais primordiais, ou eleger o culto budista, ser muçulmano, protestante, zenbudistas etc., ou nenhuma, como todo cidadão livre no Brasil. A decisão sincera é o melhor caminho.
Princípio Terra
A vida dos povos indígenas manifestase em ritual de embelezamento da vida, simbolizando-a, cercando-a de natureza, lugar onde continuamente acontece a arte dos Criadores. O grande Pai Criador Nhanderuvuçú, ao ver a maldade na terra, criou Yvý Marane’y - uma terra onde não há males e onde tudo se constrói. Na tradição judaico-cristã, temos o mito da criação do mundo: “No princípio, Deus criou o céu e a terra”, “Deus viu que isso era bom” (Gn 1,1; 3-24).
Os índios ajudam-nos a rever os conceitos que temos sobre a natureza, a reconstrução do mundo, da nossa própria casa. Cacique Seattle, disse em 1854, ao presidente dos Estados Unidos, em resposta aos que vieram comprar suas terras: “Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Talvez, apesar de tudo, sejamos todos irmãos.” São Francisco de Assis, na Idade Média, quando o desmatamento sem controle das florestas iniciava na Europa, em seu Canto das Criaturas, chamava o sol e a água de irmãos, a Terra de irmã e mãe, o lobo, de irmão.
Para os índios Tuyuka a casa é sagrada. O seu Deus Criador, para varrer a maldade da terra, construiu Casas de Leite e Casas de Frutas Doces, onde as almas das crianças são bentas.
Princípio Terra quer dizer viver em harmonia em casa e com pessoas, com um Deus Criador. Dançar livre na noite e no sol, na chuva, poder caçar e semear, ter seu xamã, é a alegria dos povos indígenas. Fazer crescer os xamãs. Isto é Criação. A alegria dos povos indígenas é ação criadora da Terra.
Princípio Coração
Em Roma, Rômulo, depois de uma contenda, feriu fatalmente seu irmão Remo com uma lança, matando-o. Na religião judaico-cristã, Caim mata seu irmão Abel. Porém os gêmeos Ipi e Y’oi não se matam. Essa atitude fraterna gravada no Mito da Criação dos Ticuna é criadora. Os gestos dos irmãos equilibram as relações do mundo Ticuna, da violência à não violência. Dificilmente veremos casos de morte entre os Ticuna. O centro do mito é o coração dos irmãos. As atitudes dos irmãos míticos refletem bondade, diálogo, perdão; a criação de um mundo novo. O coração dos irmãos representa o arquétipo central dos Ticuna, ajudando-os a viver melhor, sem violência, perto das árvores e dos rios.
No palco da vida, a imagem da alegria fica, o amor maior, daquele “que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). O mineiro Chico Xavier, nascido em Pedro Leopoldo, viveu fazendo o bem. É dele a frase: “Amar sem esperar ser amado. E sem guardar recompensa alguma, amar sempre”.
“Quando um rio poluído passa na frente de nossas casas, quando a floresta for atacada pelas chamas, as crianças não tiverem mais pão, os anciãos ficarem perdidos, a bondade tudo alcança, mesmo de um coração enterrado na beira do rio.” No outono de 1877, o coração do índio Tashunka Yotanka foi enterrado na beira do rio Wounded Knee por defender as terras de seu povo, como relatado no livro “Enterrem meu coração na curva do rio”, de Dee Brown.
Por Édison Hüttner - publicado na edição nº 415, jornal Mundo Jovem, abril de 2011, página 14.
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